Um mês de cheia histórica: O dia que nunca acabou!
05.06.2024 - Fonte: Seguro Gaúcho
Ontem, 4 de junho, completamos um mês do dia que nunca acabou. Para muitos gaúchos, a tragédia começou em momentos diferentes, mas para mim, o alarme vermelho se acendeu um dia antes com o aviso de evacuação no bairro Mathias Velho. Local onde residiam minha irmã, sobrinhos e afilhado.. Começava ali um pesadelo que ainda não terminou.
Na madrugada de 4 de maio, saí de casa às 5h, acompanhada do meu marido, com a intenção de acessar a região e resgatá-los. Infelizmente, já não havia tempo, pois muitas ruas estavam submersas e o acesso só seria possível de barco. Na escuridão, com a avenida sem energia elétrica, a única luz vinha dos faróis de caminhões e máquinas que, por serem mais altos, conseguiam sair do bairro, levando quem podiam. Não havia mais tempo para salvar bens materiais. Animais e vidas humanas se amontoavam em pás de retroescavadeiras, baús de caminhões, guinchos, trollers e tudo que tivesse altura maior que um carro comum.
À luz dos faróis, a silhueta de quem caminhava em fuga pela rua alagada era quase indescritível. Pareciam zumbis na escuridão, molhados até a altura do peito, sabendo apenas que precisavam seguir em frente para deixar aquela região. Eram pessoas de todas as idades: idosos com problemas de locomoção, crianças pequenas, bebês de colo. Ricos e pobres, todos juntos na mesma situação desesperadora. Eu poderia ter usado o celular para registrar tudo isso, mas estava ocupada ligando para qualquer contato que pudesse indicar um resgate. E quando não estava fazendo isso, ajudava as pessoas a saírem dali.
Lembro de ter pedido carona para meus familiares a um caminhoneiro. Ele respondeu que não poderia ajudar, pois estava indo buscar sua filha, que já estava no telhado da casa. O pesadelo era imenso, mas ainda não tínhamos a dimensão do seu real tamanho. Meus familiares encontraram abrigo no segundo andar de uma escola, onde já havia cerca de 300 pessoas. A água invadiu o primeiro pavimento e, temendo que ela avançasse para o próximo, alguns homens abriram buracos no telhado. No entanto, se o pior acontecesse, as telhas não suportariam o número tão alto de desabrigados. Mulheres e crianças foram levadas em caixas d'água para um local com três pavimentos, mas não houve tempo suficiente para tirar muitas pessoas, pois a água avançava rapidamente e a correnteza forte fazia com que os homens precisassem se abraçar para não serem arrastados. Outros mais corajosos usaram este meio para fugir de onde estavam.
Depois de 20 horas de desespero, meus familiares foram resgatados de barco e vieram para minha casa. Sei que para muitas pessoas, essa espera não teve um final feliz, o que torna tudo isso ainda mais desolador. Depois de alojar as parentes desalojados na meu apartamento de apenas 2 dormitórios, e ter certeza de que estavam bem, mesmo após perderem tudo, veio a nossa hora de fazer algo. Comecei a trabalhar na triagem de roupas que chegavam para doação, enquanto meu marido, filho e afilhado descarregavam caminhões de cestas básicas. Assim, vivemos dias intermináveis, preocupados também com familiares e amigos das cidades de Guaíba e Eldorado do Sul, que como os moradores de Canoas, já não têm mais nada.
Vivemos o mesmo dia a mais de 30 dias, seguimos com incertezas, contabilizando estragos, com ruas lotadas de entulhos que antes eram os bens de alguém, parte de suas histórias e frutos do suor do seu trabalho. Não é apenas lixo: são memórias de uma vida inteira. Seguimos vivendo dias iguais numa cidade dividida entre parte seca e parte molhada.
A ausência de seguro
Meus familiares, assim como milhares de outros gaúchos, não possuíam seguro habitacional ou de automóvel, o que agrava os prejuízos diante das incontáveis perdas, principalmente, no que se refere aos veículos, que depois de tanto tempo submersos, acabam em perda total.
Que neste recomeço, as pessoas tenham sua dignidade restaurada e seus direitos respeitados. Eu sigo por aqui, nas horas vagas, fazendo minha parte. Foi e continua sendo o povo pelo povo, mostrando a grandeza dos gaúchos, para que nossas façanhas sirvam sempre, de modelo a toda terra.
Sobre a autora
Andréia Limas Pires é jornalista, moradora de Canoas, uma das cidades mais afetadas pela catástrofe climática no Rio Grande do Sul, que trabalha na produção de matérias, entrevistas e coberturas de eventos para o Seguro Gaúcho.