Seguro auto e seguro garantia: lições sobre agravamento intencional do risco
11.04.2022 - Fonte: Estadão
O equilíbrio econômico-financeiro do contrato é princípio basilar do direito contratual, o que não é diferente para o contrato de seguro. Na fase pré-contratual, a fim de garantir esse equilíbrio, a seguradora, por meio da subscrição do risco, avalia o risco e define a contraprestação por assumi-lo (prêmio).
Para tanto, o proponente do seguro responde o questionário formulado pela seguradora, informando as circunstâncias que possam influir na aceitação do risco e na quantificação do prêmio – e a depender do tipo de seguro ou das informações recebidas, a seguradora procede a uma avaliação do objeto segurado.
Um segundo filtro que visa a manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de seguro acontece durante a execução do contrato e se revela na conduta do segurado que não pode voluntariamente prejudicar o equilíbrio entre risco e prêmio (princípio do absenteísmo). O segurado pode vir a perder o direito à indenização securitária, mesmo em caso de sinistro, por ter, por exemplo, descumprido as disposições da apólice, violado a boa-fé, avisado tardiamente o sinistro ou agravado intencionalmente o risco. Nesses casos, não é porque houve um dano que este deverá ser automaticamente indenizado.
As hipóteses concretas em que a seguradora é exonerada do pagamento de indenização securitária se estendem a diversos produtos de seguros, desde o seguro de automóvel, na maioria das vezes, celebrado com consumidores hipossuficientes, até o seguro garantia executante construtor, contratado comumente por empreiteiras, classificado como um seguro de grande risco, caso preencha os requisitos da Resolução CNSP nº 407, de 29 de março de 2021.
No que diz respeito ao reconhecimento do agravamento intencional do risco, pressupõe-se que haja o aumento relevante e duradouro da probabilidade de ocorrência ou da extensão e severidade do sinistro, com a alteração das circunstâncias previstas no momento da celebração do contrato de seguro, bem como que haja dolo ou culpa grave na conduta adotada pelo segurado, que possui o dever de agir de acordo com os padrões de conduta exigidos pela boa-fé.
Ou seja, o agravamento intencional do risco não se limita à probabilidade de concretização do sinistro, abrangendo também a extensão dos efeitos do mesmo. Isso porque, nesse caso, por ato do segurado, há um incremento no montante que viria a ser indenizado, sem que isso tenha sido consequência natural da concretização do risco segurado.
No caso de seguros de automóveis, o agravamento intencional da probabilidade de o sinistro se concretizar ocorre, por exemplo, quando o segurado dirige alcoolizado. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), referenda pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), neste caso, presume-se o agravamento do risco segurado, vez que a alteração das condições psicomotoras do motorista sabidamente aumenta a probabilidade de ocorrência de acidentes de trânsito. Nessa hipótese, não é exigível a indenização securitária para a cobertura de eventual sinistro que se concretize.
Assim, mesmo que o consumidor não esteja intencional e deliberadamente pensando em agravar o risco, ao descumprir um dever de cuidado, não se portando com a diligência devida no tráfico de veículos, perderá o direito à indenização securitária, salvo se lograr êxito em afastar a presunção de que a sua embriaguez contribuiu para a ocorrência do sinistro ou para a extensão do prejuízo reclamado.
Já no caso do seguro garantia executante construtor, o segurado terá agravado o risco ao entabular ajustes no contrato objeto da garantia que desfigurem e alterem consideravelmente o risco segurado. Isso pode ocorrer quando o segurado modifica o projeto executivo da obra, sem a prévia anuência da seguradora, ou ao incluir novo escopo contratual a cargo do empreiteiro sem o devido ajuste na relação prêmio-risco do seguro ou, sob o pretexto de adiantar recursos sem previsão no cronograma financeiro da empreitada, acaba por aumentar o seu prejuízo e, por conseguinte, a extensão do sinistro.
Nesse sentido, o TJ-SP recentemente reconheceu que o adiantamento de parte do preço, ainda que mediante pagamento direto a subcontratados sem abatimento do preço do contrato de empreitada, representa agravamento intencional do risco assumido pela seguradora, o que a isenta do dever de indenizar (apelação nº 1105080-73.2013.8.26.0100).
Ou seja, mesmo que sob o pretexto de que o segurado, subjetivamente, visava a cooperar com a conclusão da obra, não se pode descurar das consequências desse ajuste não comunicado à seguradora que, por consequência, vem a aumentar a extensão do sinistro. A seguradora também é interessada na conclusão da obra, razão pela qual deve ser comunicada para que possa participar da decisão acerca do meio economicamente mais viável para contornar eventuais dificuldades financeiras do tomador ou inadimplementos no curso das obras.
Outro elemento levado em consideração pelo TJ-SP foi a celebração de aditivos, não comunicados à seguradora, pelos quais foram alterados critérios de medição da obra, prazo e forma de pagamento. As apólices de seguro garantia previam a perda do direito à indenização securitária por alterações no contrato de empreitada sem a obtenção de anuência prévia da seguradora, razão pela qual o TJ-SP concluiu que a segurada perdeu direito à indenização.
A esse respeito, o TJ-SP reforçou o, às vezes esquecido, princípio do pacta sunt servanda, segundo o qual o contrato obriga às partes no limite de suas declarações. Afinal, se a segurada é uma empresa de grande porte, não pode ignorar o previsto na apólice, que visa a garantir o desejado equilíbrio entre prêmio e risco e garantir que o segurado se porte segundo a boa-fé.
As cláusulas de exclusão da cobertura securitária estão presentes nos contratos de diferentes produtos de seguro, sendo o caso para o seguro garantia, como até mesmo é sugerido pelo regulador nos clausulados-padrão da Circular Susep nº 477. Assim, além de comum, é plenamente lícita a disposição da apólice que isenta a seguradora da obrigação de indenizar em caso de o segurado empreender alterações unilaterais no contrato segurado.
Da mesma forma, no âmbito dos seguros de automóveis, é corrente que as apólices de seguro possuam cláusulas que expressamente excluam a cobertura securitária, se, por exemplo, o tomador estiver embriagado ao conduzir o veículo. Trata-se de outro exemplo de disposição que conforma o dever de o segurado se portar segundo a boa-fé.
Diante desse cenário, tanto o agravamento intencional do risco pelo segurado quanto o descumprimento de cláusulas da apólice, comprometem o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de seguro, sendo imprescindível que os Tribunais continuem a se posicionar no sentido de coibir as espécies aqui tratadas de desequilíbrio da relação prêmio-risco.
Afinal, a seguradora não emite uma garantia em branco que admite a quebra voluntária pelo segurado do sinalagma entre prêmio e risco. Não é desejada nenhuma complacência com condutas que violam a boa-fé e agravam o risco ou a extensão do sinistro, porquanto, além de se prejudicar o mutualismo inerente ao seguro, se premia o mau segurado, em detrimento dos segurados que se portam de acordo com a boa-fé – os quais são a vasta maioria!
Se consumidores presumivelmente hipossuficientes não podem descurar do seu dever de diligência ao conduzir veículos segurados, não se espera outra sanção – perda do direito à indenização securitária – a segurados que voluntariamente modifiquem o risco segurado ou agravem a severidade do sinistro por alterações unilaterais no contrato de empreitada segurado por seguro garantia, tal como concluído pelo TJ-SP no caso mencionado.