Ricardo Villar: reflexões sobre o Direito dos seguros e o agronegócio
16.02.2023 - Fonte: Ricardo Einsfeld Villar
O mercado de seguros, como sempre se disse, é extremamente pujante e, sobretudo, versátil, vale dizer, se adapta e se atualiza constantemente para atender os anseios da sociedade de risco na qual estamos – todos – fatalmente inseridos.
Os riscos se alteram, alguns reduzem com a chegada de novas tecnologias, paralelamente, surgem riscos novos, muitas vezes também derivados dessa mesma evolução tecnológica e social absolutamente, incansável e permanente.
Diante desse cenário e considerando que o Brasil, como cediço de todos, é um país eminentemente agrícola, onde as atividades vinculadas a agricultura promovem impactos financeiros e sociais relevantes e constituem, sem sombra de dúvida, parcela significativa na economia nacional.
O Brasil, inegavelmente, ocupa posição de destaque mundial no segmento há bom tempo e, verdadeiramente, a imensidão de suas áreas agricultáveis, a qualidade de sua produção, sua diversidade climática, sua pluralidade de cultivos, aliados, ainda, ao incremento de tecnologias de última geração, colocam o Brasil como um relevante parceiro internacional na produção de alimentos.
Trata-se, na esmagadora maioria das vezes, de atividade desenvolvida visando o lucro, fazendo com que os produtores rurais se desenvolvam – cada vez mais - de forma profissional, organizada e empreendedora. Evidente que a atividade agrícola é exposta a inúmeros riscos que podem comprometer, por completo ou parcialmente, o sucesso da lavoura, aliás, é justamente da existência de risco que se legitima a pretensão ao lucro.
Esses riscos são diversos e se alteram significativamente, dependendo do tipo de cultivo explorado, da época do ano e, inclusive, da região do pais onde estão sendo desenvolvidas as atividades. Ora, tratando-se de um país de dimensões continentais e de clima variado, por certo que a análise do risco, fatalmente, deverá avaliar e levar em conta todas essas peculiaridades para a contratação do seguro.
Essa evolução no seguro agrícola vem sendo percebida de maneira cada vez mais substancial no mercado segurador, restando evidente que as companhias seguradoras aprimoram suas ferramentas para compreensão e delimitação de riscos de forma cada vez mais apurada, acompanhando a evolução do próprio agronegócio.
O seguro da atividade agrícola, há não muito tempo atrás, pouco contemplava as reais necessidades dos produtores, muito mais se assemelhando a simples implementação de exigência imposta pelas instituições financeiras (prevista em lei), por ocasião da tomada de recursos para o custeio, realidade enfrentada pela maciça maioria dos produtores.
Diante daquele cenário, os produtores buscavam apenas a satisfação dessa exigência para alcançar os recursos financeiros à viabilizar a atividade agrícola, muitas vezes sequer recebendo a apólice ou dando pouca ou nenhuma importância a esta.
No entanto, com o aumento das tecnologias e aprofundado estudo das atividades, a produção agrícola venho ganhando, cada vez mais, contornos de atividade empresarial organizada, além disso, as seguradoras, como dito alhures, passaram a compreender melhor a atividade e identificar de maneira mais específica os seus riscos.
A delimitação do risco é o momento em que a seguradora busca compreender aqueles que efetivamente preocupam o segurado, destarte, quanto melhor delimitado o risco, melhor e mais acessível financeiramente será a cobertura, pois, o desconhecimento do risco pode levar a concessão de coberturas desnecessárias que acabam encarecendo o prêmio pago.
Em se tratando, como dito alhures, de atividade bastante diversificada, desenvolvida em um país de áreas agricultáveis extremamente extensas, com cultivos múltiplos e condições climáticas também bastante diversificadas, esse estudo revela-se fundamental, impondo a necessidade de entender-se especificamente os riscos daquele determinado cultivo, da região onde ele será desenvolvido e das intempéries específicas as quais é exposto.
Veja-se, por exemplo, na contratação de seguro de automóvel, quando a seguradora questiona, por exemplo, o modelo do veículo, a sua destinação de uso, a existência de condutores jovens, a disponibilidade de garagem fechada em casa ou no trabalho, entre outros questionamentos, está buscando informações capazes de ajudá-la a identificar e delimitar os riscos, dando cobertura a riscos pré-determinados, excluindo determinados riscos e limitando coberturas.
Na atividade agrícola, guardadas as devidas proporções, não é diferente. É fundamental entender quais atividades são desenvolvidas e quais os riscos que o segurado deseja se acautelar, evitando a já mencionada contratação de coberturas desnecessária que apenas encarecem o prêmio.
Um segurado que, por exemplo, desenvolva um determinado cultivo agrícola no nordeste do país, não está preocupado com os riscos de uma geada, não sendo necessário incluir tal cobertura em sua apólice. Da mesma forma, algumas culturas específicas possuem riscos aumentados para determinadas adversidades e baixo ou inexistente para outras.
Toda essa evolução nos tempos hodiernos, tanto da atividade agrícola desenvolvida de maneira mais organizada e sistemática, quanto os estudos específicos desenvolvidos pelas companhias seguradoras, trouxeram um grande crescimento na procura desse tipo de seguro, cujos números de comercialização de apólices tiveram crescimento muito expressivo nos últimos anos. Além disso, em boa medida, os seguros passaram a ser efetivamente contratados e não apenas impostos como condição de viabilidade para a obtenção de recursos (custeio) para atividade agrícola.
Paralelamente, o Governo Federal ocupou parcela significativa nessa evolução, com a implementação de planos de subvenção e apoio a atividade rural (Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural – PSR) com pagamento de parte significativa do prêmio, fomentando o crescimento de uma das atividades mais importantes para economia do país.
Esse crescimento, gize-se, não passou desapercebido pelo mercado de seguros em âmbito internacional. É cediço de todos que boa parte das seguradoras em atividade no Brasil estão vinculadas com companhias de seguro internacionais que se estabeleceram no país, sendo visível o crescimento de empresas de seguros que passaram a ofertar seguros para atividade agrícola. Da mesma forma, as operações securitárias dessa natureza são lastreadas, geralmente, por resseguradoras internacionais, pulverizando o risco suportado.
Nos últimos 10 anos, o número de companhias de seguros que passaram a ofertar coberturas para atividades rurais mais que dobrou. O valor dos prêmios emitidos igualmente cresce de maneira exponencial.
Evidente que todo esse crescimento em curto espaço de tempo, impõe algumas problemáticas cotidianas bastante complexas e o amadurecimento desse mercado ainda demandará o enfrentamento de desafios importantes. Para que se tenha ideia, essa maturação mercadológica no mercado americano e europeu se evidenciou em aproximadamente duas a três décadas.
Boa parte dessa complexidade acaba gerando desgastes entre segurado e seguradora e, muitas vezes, parte dessas discussões acabam levadas ao Poder Judiciário para dirimir divergências. Isso, de certa forma, acaba impondo o enfrentamento de questões relativamente novas, posto que, o próprio espelho jurisprudencial do direito dos seguros nessa seara é ainda relativamente escasso, especialmente se comparado a questões mais corriqueiras como o seguro automotivo, o seguro de vida, etc. Como dito de antanho, a sociedade de risco evolui e se altera, trazendo discussões novas a todo o momento e que reclamam o estudo aprofundado dos operadores do direito. Destarte, o crescimento do mercado fatalmente trará igualmente o crescimento de discussões pertinentes a serem enfrentadas no mundo jurídico.
Partindo-se da conceituação legal básica, que estabelece que “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados” tem-se que tal conceituação se aplica integralmente ao seguro agrícola. No entanto, em que pese a conceituação e os princípios basilares que norteiam o direito dos seguros não possam ser olvidados, importante atentar para algumas peculiaridades dos contratos de seguro relativos a atividade rural.
Uma das discussões jurídicas mais comuns nos conflitos entre segurado e seguradora trazem, de um lado, a necessidade de respeitar o regramento contratual pré-estabelecido pela seguradora e, por outro lado, a necessidade de que o segurado efetivamente compreenda os direitos e obrigações estabelecidos nesse contrato, não sendo surpreendido por ocasião da ocorrência do sinistro.
O que se vende ao segurado em um contrato de seguros é a garantia, isto é, a segurança de que, na eventualidade de ocorrência do sinistro o segurado ter seu patrimônio preservado, no caso a lavoura. Assim sendo, a quebra dessa segurança só pode ocorrer em situações especificas de perda de cobertura, risco não coberto e riscos excluídos e isso precisa – necessariamente – estar devidamente evidenciado de forma clara por ocasião da contratação.
É utópica a pretensão da seguradora de presumir que o segurado conhece e concorda com todo o clausulado, sobretudo porque, não raramente o segurado sequer recebe a apólice, muitas vezes existe apenas a referência de que o clausulado encontra-se disponível em determinado tabelionato de notas, sendo que o segurado, ainda que receba ou acesse esse clausulado, dificilmente irá se dedicar a sua leitura, dada a extensão das condições contratuais gerais e especiais, mais que isso, ainda que leia, dificilmente compreenderá todos os termos e condições, dada a complexidade técnica de alguns clausulados.
Paralelamente, seria perigosamente cômodo presumir que o segurado desconheça por completo a totalidade de seus direitos e obrigações, o que inviabilizaria a própria atividade securitária sistemicamente organizada.
É fundamental a busca pelo equilíbrio da relação, seja na simplificação e redução do clausulado, dando ênfase nas questões mais importantes, como as garantias compreendidas e, sobretudo, salientando de maneira compreensível as exclusões e limitações de cobertura. Paralelamente, para reduzir esse dualismo pendular onde ninguém verdadeiramente ganha, faz-se mister o incentivo ao aculturamento dos segurados sobre o contrato de seguros, fazendo-os compreender princípios básicos que lastreiam a relação sinalagmática, tais como a limitação de riscos, a mutualidade, etc.
Nessa evolução o corretor de seguros exerce função relevantíssima, pois, quanto mais qualificado e preparado o corretor, melhor as relações entre segurado e seguradora, eis que, além da função comercial de intermediário da contratação, compete ao corretor esclarecer detalhes importantes do contrato de seguro. A qualificação específica do corretor para cada ramo de seguros em que ele atue é - cada vez mais - exigência indispensável reclamada pelo mercado moderno. O corretor “clinico geral” é atividade em extinção.
Os dois maiores inimigos do mercado segurador são, sem sombra de dúvidas, a má-fé e a frustração gerada ao segurado de boa-fé que vê sua expectativa de segurança frustrada, justamente no momento em que mais precisa.
A fraude, seja premeditada ou oportunista, seja do segurado ou da seguradora é, como já se disse, verdadeiro “câncer” para o mercado de seguros e deve ser combalida ferrenhamente. Paralelamente, quando um segurado de boa-fé é surpreendido com uma negativa de cobertura que acreditava legitimamente possuir, perde – não apenas o segurado – mas sim todo o mercado segurador, pois isso afeta o que de mais valoroso possui esse mercado: a credibilidade.
A seguradora não “ganha” ao deixar de pagar uma indenização, sobretudo porque gestora de um fundo mutual composto pelo colégio de segurados, ao revés, ela perde ao deixar à deriva aquele que depositou confiança no instituto do seguro, acreditou estar acautelado e quando mais precisou, foi surpreendido com uma exclusão ou limitação de cobertura que não estava devidamente evidenciada.
No seguro do agronegócio, todas estas problemáticas já comuns a outros tipos de seguros são evidenciadas e, em alguma medida, potencializadas. Isso porque além do costumeiro clausulado (muitas vezes extenso e complexo), as companhias costumam advertir que o segurado deverá, sob pena de perda de direito a cobertura, seguir as orientações dadas pelo MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como, obedecer às instruções contidas no ZARC – Zoneamento Agrícola de Risco Climático, o que acaba impondo uma carga ainda maior de obrigações ao segurado.
A verdade é que a atenção e observância ao ZARC e as orientações emanadas do MAPA deveriam ser – na essência – uma fonte de auxílio ao segurado visando potencializar o sucesso da lavoura, no entanto, na prática, algumas seguradoras estão usando essas orientações como justificativas para furtarem-se a concessão de cobertura.
Por certo que algumas dessas orientações e recomendações são extremamente uteis e a sua inobservância pode efetivamente comprometer o sucesso do cultivo e, nesses casos, tal desatenção pode embasar a negativa, no entanto, alguns eventuais descumprimentos importam em meras falhas burocráticas que não agravam o risco da relação securitária e, nesse caso, não podem embasar a negativa, sendo tal condição contratual indubitavelmente abusiva.
Independentemente dos regramentos e condições específicas do contrato de seguros do agronegócio é inegável que os princípios norteadores do direito dos seguros e a legislação de regência da matéria não possam ser ignorados.
Entre as obrigações precípuas do segurado estão, além do pagamento do prêmio, o dever de boa-fé e lealdade contratual (especialmente no que se refere as informações prestadas) e o não agravamento intencional do risco. Nesse diapasão, o eventual descumprimento de questões burocráticas e que não alteram o risco, em que pese possam ter outras consequências, até de ordem administrativa junto ao poder público, não podem servir de escudo para obstar a concessão de pagamento de indenizações.
Apenas a título de exemplo, existem companhias negando a cobertura por ter o segurado descumprindo o prazo estabelecido para entrega do denominado anexo 33, ora, trata-se de documento obrigatório para todo o produtor rural que pretende utilizar parte da produção como semente para uso próprio na safra seguinte, previsto no Decreto 10.586/2020, que regulamenta a Lei nº 10.711 sob a égide do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e que deve ser entregue em prazo específico, no entanto, tal descumprimento (atraso na entrega da declaração do anexo 33), efetivamente não altera ou agrava o risco segurado, portanto, embora possa ter consequências administrativas perante o poder público, não pode, s.m.j., servir de base para embasar a negativa simplesmente por tratar-se de descumprimento de legislação que regula a atividade (MAPA).
Aceitar esse tipo de justificativa seria conceder uma amplitude perigosa e ainda maior de restrições ao direito do segurado, para além dos limites técnicos já impostos na apólice e no clausulado, independentemente de tal conduta ter agravado ou não o risco.
Na mesma esteira, as alegações de falha de manejo ou mesmo de plantio já em condições de seca, ou ainda de desenvolvimento insuficiente do cultivo (estado fenológico), devem vir amparadas por substanciado laudo pericial.
Saliente-se, por oportuno, que a seguradora, além de ditar o clausulado (de adesão), de impor limitações e exclusões, pode ainda (e deve) periciar o local do risco, podendo inclusive declinar o risco, ou seja, unilateralmente não aceitar a contratação do seguro. Igualmente, pode periciar o local durante o desenvolvimento da lavoura e por ocasião de eventual regulação de sinistro, portanto, não declinado o risco, consequentemente, contratado o seguro e pago o prêmio pelo segurado, deverá a seguradora, para obstar a concessão de cobertura, apresentar prova técnica robusta de descumprimento contratual apto a amparar tal negativa.
Com avanço das tecnologias que propicia, por exemplo, o uso de imagens por satélite, o monitoramento remoto e o georreferenciamento, entre outros recursos, é possível monitorar o avanço da lavoura em todas as suas etapas e municiar a regulação do sinistro com qualidade, entretanto, a regulação reclama profissionais capacitados e que atuem de forma independente e imparcial.
Entre as muitas peculiaridades desse tipo de seguros estão ainda a sua sazonalidade, ou seja, quando os sinistros acontecem, geralmente acontecem em uma mesma época o que dificulta a regulação que, como dito de antanho, reclama a atuação de profissionais capacitados (que escasseiam em época de crise), sendo esse apenas mais um dos desafios que a maturação do mercado reclama.
O acesso aos elementos colhidos na regulação e que embasaram a negativa de cobertura devem ser disponibilizados ao segurado, em nome da transparência e lealdade contratual, sobretudo porque a regulação não é algo promovido a favor ou contra o segurado, mas sim um levantamento técnico e imparcial que preserva, acima de tudo, o fundo mutual do qual todos os segurados fazem parte.
Evidente que os desafios são muitos e essa sucinta reflexão – obviamente – não tem o objetivo de esgotar o tema, tampouco de apontar a solução mais adequada, mas sim e tão somente, de fomentar a reflexão e o debate construtivo de ideias, fundamental ao bom desenvolvimento do mercado segurador, ao regular desenvolvimento da própria atividade agrícola (tão fundamental para nossa economia) e, acima de tudo, a harmonização entre segurado e seguradora.