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Jayme Garfinkel: 'Cuidando deles, estamos cuidando de nós'

18.12.2019 - Fonte: A Tribuna

JAYME

Empresário do setor de seguros cria instituto que busca reinserção social de egressos do sistema prisional.

Quem caminha pelos dois quarteirões do bairro paulistano de Campos Elíseos, entre a Alameda Dino Bueno e a Avenida Rio Branco, encontra um complexo diversificado da Porto Seguro (escritórios, teatro, espaço cultural, restaurante). Mas, no meio dos modernos edifícios, há uma casa antiga, toda restaurada, que se diferencia.

No modesto casarão funciona há quatro anos o Instituto Ação pela Paz, presidido por Jayme Brasil Garfinkel, que por 47 anos esteve à frente da Porto Seguro. Em maio deste ano, deixou com o filho a tarefa de presidir o Conselho de Administração, atravessou a rua e arregaçou as mangas, agora não mais para falar de seguro, mas sobre um segmento da sociedade bem diferente: a população de presos e egressos do sistema prisional.

Aos 73 anos, podendo reduzir o ritmo de trabalho e gozar de vida mais tranquila, mergulhou de cabeça no instituto que criou em 2015 e que tem por missão agregar pessoas e projetos que mostrem que o preso pode voltar ao convívio social mais consciente de si e de suas capacidades.

Ao lado de Solange Senese, seu braço direito nessa empreitada, e de uma equipe enxuta, Jayme Garfinkel tem como foco a redução da reincidência criminal. Apoiando projetos que tenham como propósito dar uma nova oportunidade a esse público, especialmente no mercado de trabalho, o instituto vem obtendo resultados positivos.

“O objetivo é multiplicar essas ações, fazer a sociedade entender que cuidando deles estamos cuidando de nós”, diz. Nos planos de 2020: descer a Serra e plantar as primeiras sementes na Baixada Santista, proposta que já tem apoio de alguns empresários.

Com tantas minorias e excluídos sociais, por que focar nos egressos do sistema prisional?

Me interesso por vários públicos, apoio outras iniciativas, como as de moradores de rua e de educação de crianças carentes em Paraisópolis. O instituto surgiu porque eu queria envolver os empresários em algum projeto que ajudasse a resolver um problema comum a todos: a violência. Todo mundo sofre com ela. E onde poderíamos atuar? No sistema prisional. Essa intenção de juntar todos não aconteceu, mas ficou na minha cabeça.

O instituto surgiu na esteira dessa preocupação, então?

Eu tinha um incômodo desde a infância, porque ouvia meus pais falarem sobre a indiferença que os alemães tinham com os judeus dos campos de concentração. Eu ficava pensando: tem gente aqui, a poucos quilômetros da mim, em uma condição bem pior. E eu pensava: preciso fazer alguma coisa por esse cidadão excluído que está tão perto de mim. Fiquei pensando muito tempo sobre como me envolver com o sistema prisional. Foi, então, que conheci a Solange (Senese), em uma reunião que tratava do sistema penitenciário. Eu com o meu incômodo, ela entusiasmada como é.

O instituto não tem nenhuma participação política ou do governo?

Não tem. E esse era um valor quando nós pensamos em criá-lo. Queríamos fazer alguma coisa independente.

E quais são os critérios para escolher este ou aquele projeto para apoiar?

Nós sentamos toda terça-feira, analisamos as propostas que nos chegam pedindo apoio e decidimos. Eu nem precisava estar, porque minha equipe sabe quais são os nossos propósitos, mas eu faço força para estar sempre, pois acredito que, se é para fazer, vamos fazer juntos. Estar junto gera confiança, entusiasmo e união.

Quando o senhor fala apoiar, refere-se a apoio financeiro?

Exatamente. E, às vezes, até operacional. Recentemente, fomos conhecer a Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), que tem um trabalho bem bacana que trata a questão prisional sob uma ótica diferente. São presídios humanizados, em que os presos são acolhidos e ficam ali se realmente demonstrarem que querem se recuperar.

Eu já fui duas vezes à Apac de São João Del Rei, em Minas Gerais. Na primeira vez, quem nos levou para conhecer tudo foi um dos presos, condenado a 27 anos. As celas do presídio são de porta aberta. É um modelo que reúne disciplina, regras, forte influência religiosa, mas que acredita no preso e que ele está ali para depois voltar pra sociedade.

O instituto, portanto, oferece apoio a iniciativas que apostem na recuperação integral do preso e que trabalhem com ações nesse sentido?

Sim. Por exemplo, recebemos aqui um projeto de Piracicaba que trabalha com a questão da família dos presos. Eles preparam um café da manhã toda terça-feira para oferecer aos visitantes, entendendo que esse momento com a família é importante e pode ser acolhedor, caloroso.

E como o instituto mede que o apoio a iniciativa como essa surte resultados positivos?

Nós criamos um sistema de monitoramento que mede o retorno de cada centavo investido. Com o projeto que citei, talvez a gente não consiga esse nível de precisão, mas ele está em sintonia com a ideia de que a presença da família e dos amigos é fundamental para a recuperação da pessoa.

Para os outros projetos, como é feita a medição de resultados?

Olha, por exemplo, temos lá um projeto que se chama Semeando Sonhos. Nós acompanhamos o passo a passo do preso nesse curso: participou de todas as sessões? Fez o relatório final? Quando ele ganhar a liberdade, nós vamos acompanhar o que aconteceu com ele, se reincidiu ou não. A gente só
vai saber quais são os bons projetos depois de algum tempo, quando o preso estiver de volta à sociedade. No Semeando Sonhos, o índice de reincidência no crime foi menor do que 1%.

Toda semana chegam projetos novos?

Toda semana a gente analisa projetos. A nossa ideia é impactando a sociedade, lentamente, ir conscientizando as pessoas sobre a necessidade de trabalhar com esse público de uma forma diferente. Não temos projeto político, não queremos faturar status com foco em interesses pessoais. Nada disso.

Já esteve em um presídio?

Já. A primeira vez foi na ala feminina do Carandiru. Quando eu me dei conta, percebi que estava no meio de pessoas como eu.

O senhor esteve à frente da Porto Seguro por 47 anos, relacionando-se com empresários de todos os setores, como o Jayme da Porto Seguro. Como é, agora, ser o Jayme do instituto?

Eu até me penitencio um pouco, porque não uso todo o potencial de portas que posso abrir por conta desse tempo de relacionamentos que fiz na Porto. Nessa história da minha vida, abri portas, mas não tenho tantos amigos empresários. Sempre tive uma vida particular fora desse jet set. Não é a minha praia.

E de onde vem o orçamento do instituto para apoiar os projetos?

Quando começamos, em 2015, houve um aporte de recursos de vários lados, inclusive meu. E é com esse valor que estamos trabalhando. Eu não quero criar uma contribuição mensal de ninguém. Disse a todos que nos ajudaram no início que a ideia era fazer o aporte e começar, ver se o nosso propósito funcionaria. Queríamos o desafio de fazer funcionar.

É comum em pessoas mais velhas, que já tiveram uma trajetória pessoal e profissional, serem céticas, descrentes e, às vezes, até desanimadas. O senhor foi fazer algo novo e diferente aos 73 anos, e com um propósito desafiador.

Se tem alguma coisa que está me incomodando e eu não faço nada para tentar resolver, deixo de ser humano. Quero atuar para não deixar de ser humano, entende? Eu acho muito mais interessante estar aqui no instituto atuando do que ficar na fazenda, fumando charuto e me enganando que está tudo bem. Tenho dúvida se a humanidade possui a capacidade de resolver os problemas que ela mesma criou, mas preciso tentar.

Nas minhas palestras, eu sempre uso aquela história do sujeito que vive num vilarejo ao lado de uma montanha. E essa montanha é tão alta que tampa o sol. O vilarejo está sempre frio, com pessoas doentes, gripadas, porque o sol não chega lá. Um dia, esse sujeito pega uma colher e diz: “Vou remover essa montanha”. Todo mundo ri dele, e ele diz: “Eu sei que não vou remover, mas vou começar”.

E esse exemplo serve para o instituto?

Exatamente. Eu sei que não vou resolver todo o problema do sistema prisional, mas preciso tentar, preciso começar, preciso fazer alguma coisa. Se eu não fizer isso, não vou me sentir vivo. É uma questão de ser humano. Que cada um seja empresário de seu próprio trabalho, do próprio eu. Essas coisas me movem.

Em uma entrevista, o senhor falou que não podemos varrer os problemas sociais para debaixo do tapete. Acha que a forma como se trata a questão prisional no Brasil é varrendo-a para debaixo do tapete?

Creio que sim. Eu descobri, por exemplo, que há uma distorção na forma como estamos prendendo pessoas. Talvez tivesse que se repensar tudo desde o começo, toda a legislação que prevê as situações em que se leva uma pessoa pra cadeia. E tem mais uma coisa: essas pessoas vão voltar pra rua, vão conviver comigo na sociedade.

O trabalho do instituto é para o nosso benefício. Eu não quero ser vítima de violência, ser assaltado. Cuidando dessas pessoas, estou cuidando de mim mesmo. Está cheio de gente fazendo diagnósticos no Brasil, e parece que não saímos dos diagnósticos. Nossa forma de agir é diferente: se você tem um bom projeto, eu ajudo. Só que eu vou medir o resultado disso depois, com indicadores e avaliações de cada centavo investido. Aos poucos, a gente vai contaminando outras pessoas para outras iniciativas.

Alguns presos se envolvem com facções criminosas, dentro e fora da cadeia. Como o instituto lida com essas situações, especialmente porque alguns são convidados a voltar para os grupos quando saem?

Nós apoiamos, inclusive, duas iniciativas que são geridas por ex-detentos de facções criminosas. As facções não nos veem como alguém que está tirando gente do exército delas. Em geral, eles não querem perpetuar essa situação com os filhos deles, não querem ter sucessores. Eles querem dormir em paz. Dá trabalho viver no crime.

Quem é Jayme Garfinkel?

A coisa que melhor fiz na vida foi agregar pessoas. Quando eu era pequeno, só podia sair à rua nos finais de semana. Então, organizava as partidas de futebol com os amigos. E eu era aquele cara que levava a bola, montava os times, via onde ia ser a partida. Eu estou aqui para fazer as coisas acontecerem. E não estou preocupado que seja a minha ideia. Eu penso: você tem uma ideia? Ela é boa? Como vamos trabalhar juntos para que ela aconteça? Assim foi com os meus filhos, que agora estão à frente do conselho da Porto. Passei tudo que sabia, os valores. Agora, eles tocam pra frente com o estilo deles.

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