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A controversa Medida Provisória nº 954 de 2020

05.05.2020 - Fonte: Sperotto Advogados Associados

DOCUMENT

Dentre as ações promovidas pelo governo no sentido de enfrentar a crise sanitária decorrente da pandemia do novo Coronavírus, merece destaque o objeto da Medida Provisória (MP) 954/2020[1] editada no dia 17/04 que, entre outras situações, estabelece o compartilhamento compulsório dos dados pessoais de todos os usuários de telefonia móvel e fixa com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A referida MP estabelece que as empresas de telefonia disponibilizem ao IBGE a relação de dados como nome, número de telefone e endereço dos usuários, tanto de telefonia móvel quanto fixa, não havendo distinção entre pessoas físicas ou jurídicas.

Há de se pontuar o prazo estipulado para as empresas realizarem o envio dos dados ao IBGE, segundo qual o texto da MP determina ser de 7 dias, sobrepondo-se inclusive ao relatório de impacto à privacidade, que em tese deveria ser produzido a priori ao compartilhamento de dados.

Estima-se que as empresas de telefonia no País detenham algo em torno de 200 milhões de dados de usuários, entre telefonia móvel e fixa, o que de sobremaneira evidencia o impacto decorrente da referida MP, em vista que o domínio de tais dados possibilita uma influência extremamente abrangente da população.

Importante mencionar que, na mesma ocasião da edição da MP 954/2020, foi publicada a instrução normativa nº 2 do IBGE, estabelecendo que cabe às empresas de telefonia definir a forma que o compartilhamento será realizado.

Tendo em vista da previsão contida no § 2º, do art. 2º da MP, foi ofertada a oitiva da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL)[2], que elaborou parecer dispondo inicialmente que o compartilhamento previsto na MP deveria ser realizado em consonância aos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vista de ser a norma cogente capaz de regular o tratamento de dados, ainda que a referida Lei não detenha os efeitos em vigor.

Ato contínuo, a ANATEL recomendou ao governo que a MP deveria se balizar pela denominada transparência ativa, ou seja, é orientado que o tratamento de dados almejado pelo ato presidencial deva ser realizado de forma transparente e de modo que possa ser auditado pelos órgãos de controle, em atenção aos direitos individuais e coletivos dos titulares dos dados.

Se não bastasse isso, sob o artificie da existência da tutela constitucional ofertada aos dados pessoais, é referido pela ANATEL que o compartilhamento objeto da MP deve ser fundamentado nos princípios previstos na Constituição Federal.

Ocorre que o conteúdo da MP 954/2020 não possibilita identificar de forma clara qual o objetivo do governo em deter os dados de milhões de usuários de telefonia, se restringido à MP informar que o compartilhamento visa “produção estatística oficial”, não esclarecendo qual a sua finalidade, tampouco a relação das pesquisas desenvolvidas pelo IBGE e as medidas adotadas pelo governo frente ao combate do surto do novo Coronavírus.

Com efeito, ainda que esteja aflorado um senso de urgência decorrente do estado de calamidade pública vivenciada, não é plausível admitir que o governo execute decisões complexas (deter informações sobre todos os usuários de telefonia do País), sem ao menos estabelecer qual o nexo entre os dados de telefonia a serem disponibilizados e o protocolo a ser implementado pelo governo, ignorando inclusive as recomendações estipuladas pela ANATEL.

Com efeito, ainda que a intenção do governo seja combater a proliferação do novo Coronavírus, o entendimento é que a sua atuação deve ser pautada na razoabilidade, ou seja, ao editar a medida provisória que almeja ter acesso aos dados de todos usuários de telefonia móvel e fixa do País, deveria ter definido um campo de ação e não somente especificar que o compartilhamento dos dados vai servir para “produção estatística oficial por meio de entrevistas domiciliares não presenciais”, sendo sua competência esclarecer a forma que o tratamento dos dados coletados vai ser realizado, para que não seja oportunizado o desvio da sua finalidade.

Sob esse contexto, sendo notório que o tratamento de dados pessoais pode ser incorporado aos serviços do governo para incontáveis situações, imprescindível que a MP apresente em seu arcabouço a previsão de um protocolo a ser observado quando do tratamento dos dados compartilhados pelas empresas de telefonia com o IBGE.

Ocorre que em face da inexistência de motivação aparente que viabilize o compartilhamento de dados previstos na MP, ocorreram inúmeros movimentos no sentido de que o texto do referido ato presidencial não tivesse efeito pleno, ensejando a apresentação de 344 emendas ao texto da MP, sem mencionar a interposição de 5 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs).

Cabe referir que as ações ajuizadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 6387), pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB (ADI 6388), pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB (ADI 6389), pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL (ADI 6390) e pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB (ADI 6393) detém o bojo de declarar que o compartilhamento proposto pela MP não apresenta os requisitos mínimos que possibilitem a sua realização, além de que a MP fere o caráter constitucional auferido aos dados pessoais.

Oportuno ressaltar que as ações decorrentes da edição da MP não visam tão somente resguardar o sigilo e a privacidade dos titulares dos dados pessoais, mas sim afastar o risco de emergir da MP uma “sociedade da vigilância”, razão pela qual se reivindica que o governo realize o tratamento das informações advindas das empresas de telefonia de forma adequada, proporcional e transparente, de modo que os dados pessoais dos usuários não sejam utilizados para outros fins sem ser o combate à pandemia.

Ao passo da dimensão dos efeitos decorrentes da MP 954/2020, a ministra Rosa Weber, do Superior Tribunal Federal (STF), que é relatora das cinco ADIs que visam impedir o compartilhamento de dados estipulado no ato presidencial, acionou o IBGE e a ANATEL, a fim de que os mesmos apresentassem detalhes acerca dos procedimentos a serem realizados.

Não obstante, em análise preliminar, a ministra relatora acolheu a tese de que o objeto da MP detém natureza constitucional, consignando que o texto da MP não apresenta os requisitos mínimos que possibilitem ‘o sigilo, a higidez e o anonimato dos dados compartilhados’[3], razão pela qual deferiu a preliminar requerida, determinando que o IBGE suspenda imediatamente o compartilhamento junto às empresas de telefonia.

Segundo a ministra Rosa Weber, em se tratamento de compartilhamento de dados albergados constitucionalmente (art. 5º), deve ser observada a efetiva proteção dos direitos fundamentais dos titulares, o que de fato não se vislumbra na MP, em atenção à recomendação produzida pela ANATEL.

Portanto, o que se depreende é que o texto da MP não possibilita a compreensão da relevância da pesquisa a ser realizada pelo IBGE, tampouco a sua necessidade, adequação e proporcionalidade.

Os efeitos subsequentes da pandemia ensejam o questionamento sobre qual a próxima utilização que os dados pessoais, objeto da MP, poderiam ser destinados, tendo em vista que não é possível identificar no texto da MP sequer de que forma seria procedida a exclusão das informações, transparecendo que a decisão proferida pela ministra Rosa Weber, ainda que em sede cautelar, demonstra-se sensata.

 

 

*Por Dr. Saymon Leão – OAB/RS 99.623 – Integrante da Comissão Especial de Seguro e Previdência Complementar da OAB/RS, integrante do Grupo Nacional de Trabalho Novas Tecnologias da AIDA BRASIL (Associação Internacional do Direito do Seguro), integrante do capítulo Legal Hackers Porto Alegre.

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